Sinopse:
"Filho de um dos quatro deuses de Kurgala, Adapak vive com o pai em sua
ilha sagrada, afastada e adorada pelas diferentes espécies do mundo. Lá, o
jovem de pele absolutamente negra e olhos brancos cresceu com todo o
conhecimento divino a seu dispor, mas consciente de que nunca poderia deixar
sua morada.
Ao completar dezenove ciclos, no entanto, isso muda.
Testemunhando a ilha ser invadida por um misterioso grupo de
assassinos, Adapak se vê forçado a fugir pela vida e se expor aos olhos do
mundo pela primeira vez, aplicando seus conhecimentos e uma exótica técnica de
combate na busca pela identidade daqueles que desejam a morte dos Deuses de
Kurgala".
Deem valor à literatura
fantástica brasileira. Affonso Solano faz neste livro uma obra de fantasia que
atrai o leitor em uma leitura simples, rápida e dinâmica, mas nem por isso
fraca em explicar seus detalhes e descrever as situações em que o personagem
principal se envolve. É cada vez mais crescente a visibilidade que os novos
talentos brasileiros despontam, e isso está vinculado principalmente às
divulgações na Internet. O autor é muito conhecido para quem costuma interagir
com o mundo nerd, e faz parte do trio que compõe o podcast Matando Robôs
Gigantes. E sendo um brasileiro, é importante que a divulgação de trabalhos
assim seja disseminada, até mesmo para extinguir um estereótipo histórico sobre
nossa literatura ser ruim e monótona.
A história começa... já
começando. Um ponto não inovador, mas que agrada àqueles que foram atraídos
pela premissa de aventura do livro, com cenas de ação e mostrando ao que veio.
Temos, no primeiro capítulo, Adapak, o personagem principal em fuga,
lançando-nos perguntas do tipo “por que o estão perseguindo? Quem o está
perseguindo?”. O bom aqui é que vemos já em ação muitos dos elementos que serão
detalhes cruciais da história, que posteriormente serão explicados um a um, em
sua devida ordem e tempo. Não nos é explicado muito sobre Adapak nesse primeiro
capítulo, já que o foco central é a apresentação de suas habilidades como
Espadachim.
O segundo capítulo dá um salto no
tempo para o passado de Adapak. Esses saltos são frequentes no decorrer do livro, e é aqui que a maior parte da história do personagem é explicada, sua
origem, criação e o porquê de ser chamado de “espadachim de carvão” e como
desenvolveu suas habilidades. O ritmo da narrativa, dessa forma, agrada pelo
desprendimento em tentar explicar a história do protagonista
através de uma passagem linear de tempo. Os flashbacks não atrapalham e logo
você entende que esse é estilo escolhido por Affonso Solano ao contar a
história de Adapak, no intuito de explicar e prender o leitor.
Com essa fórmula, somos
apresentados ao mundo de Kurgala. Estamos em um lugar de espécies mistas, onde
nenhuma é maior que a outra – e existem humanos. Através da diversidade de
criaturas, as páginas do livro nos ensinam de forma descontraída e fácil a
origem de Kurgala: anteriormente criada e habitada por dois espíritos, esse
mundo não era nada além de um imenso mar inabitado. Vierem então quatro deuses
(“Os Quatro que São Um” ou os “Dïngiri”) e, sob a permissão desses dois
espíritos, passaram a morar em Kurgala, presenteando os antigos moradores com uma casa. Entendemos aqui a morada de cada um dos deuses como sendo
continentes. Passado um longo tempo, os Quatro sentiram-se sozinhos e começaram
a cultivar a vida em Kurgala, dando início a todas as espécies existentes.
Descontentes com a criação dos mortais, os dois espíritos resolvem extinguir a
criação dos Quatro deuses ameaçando inundar Kurgala e transformá-lo num imenso
mar, como antes. Um dos quatro Dïngiri, o mais sábio deles, decide aprisionar
os dois espíritos em um “imenso deserto de gelo” afim de impedir a catástrofe.
Insatisfeitos com a atitude do irmão, os outros deuses convocam uma reunião que
dura muito tempo e, ao fim dela, partem para viver exilados em suas próprias
casas, abandonando o mundo mortal de Kurgala e entregando-o ao caos e crescente
desordem - outra fórmula não original, porém extremamente criativa do autor. O
mundo de Adapak é uma mistura de inúmeras religiões, línguas e espécies,
lembrando muito o universo de Star Wars dentro de sua diversidade.
No decorrer desse enredo, Adapak
procura por respostas e antigos amigos de sua infância, no mesmo ritmo que o
passado nos é explicado e sabemos (não é spoiler, obviamente) que o
protagonista é filho de um desses quatro deuses de Kurgala. A relação de pai e
filho é comovente e próxima, criando no leitor uma profunda empatia pela figura
divina e paterna – eu queria ser filho de um deus como esse, admito! A relação
é um dos principais fios condutores da história (o resto é spoiler). Adapak é
um verdadeiro nerd feliz, vivendo em uma caverna com o pai, cercado por
aprendizados profundos e questionamentos filosóficos de espécies mortais e
sapientes. Em resumo, todo o conhecimento que possui sobre Kurgala é
basicamente teórico, daí a personalidade e pontos de vista cativantes e
inocentes. Não bastando o fato de adorar livros de fantasia - como dos irmãos
“Tamtul e Magano” que guiam e comparam muitas de suas atitudes -, Adapak é um
exímio lutador. Justamente por conhecermos seu passado e suas figuras
participantes, vemos como ele aprendeu e utiliza sua intrigante técnica de luta
(“Os Círculos Tibaul”).
As medidas na obra são outra
parte interessante: não existem metros para definir altura, e sim “cascos”,
referindo-se à parte de um animal de Kurgala. Os anos são chamados de Ciclos, e
outras medidas de tempo são designadas pelas “luas”. A substituição dos termos
não interfere em nada, é outra vez facilmente explicado e entendido, a julgar
que estamos em um mundo totalmente novo e fantasioso. Outro ponto é o nome das
espécies e nome dos personagens. Leva algum tempo para acostumar e decorar
(particularmente algumas espécies me deixaram perdido), assim como suas
descrições e aparências exóticas – que lembram muito o universo de H.P.
Lovecraft e Robert Howard, criador de Conan.
Se há pontos negativos, eles são
poucos. Percebe-se que Affonso Solano tem um potencial bem maior a ser
explorado, e como “O Espadachim de Carvão” é a primeira obra literária de sua
autoria, fica claro que isso será mais bem desenvolvido nos livros seguintes da
série – sim, haverá continuações. Além disso, o livro não é a melhor obra de
fantasia brasileira, não há nela significados épicos a ponto de fazê-lo erguer
os braços e exaltá-la a um nível supremo de veneração.
Algo que também pode ser negativo
é o tamanho do livro (255 páginas, curto demais!), por outro lado vem a se
tornar um ponto positivo, já que como dito no início, o modo de escrita de
Affonso Solano é extremamente fácil e rápido, o que garante uma diversão
garantida e um forte afloramento da imaginação ao mergulhar em Kurgala. O final surpreende e o faz entender melhor as motivações do vilão, é uma ideia que você
compra, uma ideia coerente e compreensível. Daí vem o gancho para os próximos
volumes.
Por fim, o que vale aqui é a
história, e “O Espadachim de Carvão” é extremamente recomendável. Primeiro, por
apresentar um enredo que te suga e diverte; segundo, por ser genuinamente
brasileiro, o que mostra que temos bons materiais e ótimos autores inteligentes
e criativos a serem apreciados.
Nota: 8,5 de 10
Por Felipe Santiago